Heróis da sarjeta
Matéria para o suplemento Sujeito, produzido para as disciplinas Jornalismo Impresso II e Planejamento Grafico Editorial II
O grande desafio não é tirá-los da rua, mas tirar a rua deles
Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco,
do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados,
são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver,
os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier;
nada se perde na natureza.
(João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas)
Nathalia Rocha e Isabela Romitelli
Dia chuvoso em Bauru. Ruas alagadas, pessoas so- bre ônibus perdidos em meio às águas. As ruas da cidade param por algumas horas. Cidadãos comuns às vezes têm a opção de esperar até que a chuva passe. Enquanto isso, correm aqueles que não têm um teto. Para eles, a rua não pára. É sua moradia, seu abrigo, e sua sobrevivência. De acordo com pesquisa realizada pela Secretária do Bem Estar Social, cerca de 80 pes- soas vivem em situação de miséria no município. Isso sem contar aqueles que migram de uma região para outra.
Dentre as razões que levam um cidadão às ruas, as mais comuns são as perdas fami- liares, as desilusões amorosas e o envolvimento com drogas. Uma vez no asfalto e diante de suas dificuldades, esses indivíduos ainda enfrentam o descaso daqueles que passam e não só deixam de ajudá-los, mas, muitas vezes, os destra- tam. “A pior parte é a humilhação. Ficar sujo, fedendo, pedindo as coisas. Olhar na cara das pessoas e elas não fa- larem nem ‘bom dia’. Você vai chegando e fecham a porta, te tratam como um presidiário”, desabafou Carlos Roberto, 51.
Em Bauru, algumas entida- des oferecem abrigo e alimentação a pessoas em situação de rua, como o Centro POP e o Centro Espírita de Amor e Caridade (CEAC). No CEAC, além do serviço de pernoite, há atendimento àqueles que buscam sair da rua, a chamada “casa de passagem”, em que os indivíduos recebem apoio psicológico, fazem atividades terapêuticas e seguem uma rotina de reinserção social e, ao final, são encaminhados para oportunidades de emprego.
Apesar dos serviços de as- sistência, muitos se recusam a aceitar ajuda e preferem continuar vivendo daquilo que conseguem na rua. Fica claro o contraste entre aqueles que procuram auxílio do CEAC, os quais descrevem o centro e sua equipe como os únicos que lhes ofereceram uma oportunidade, e os cidadãos que pre- ferem continuar onde estão. “Você vai no albergue e fica tipo em uma cadeia, é trata- do de uma forma diferente.
Na rua eu estou melhor. No albergue hoje em dia tem guarda, tem polícia, eu prefiro a rua”, afirma Morador de Rua, que preferiu assim ser identificado. Essa visão negativa talvez ex- plique o fato de o albergue, que oferece vinte vagas, nunca ter atingido sua capacidade máxima. “A gente vê a rua como algo muito fácil. Enquanto os usuários encontrarem na rua tudo o que eles tinham dentro de casa, eles não vão ter porque sair. Enquanto a sociedade indiretamente sus- tentar um morador de rua, ele não vai voltar para um lugar onde ele tem regras para se- guir. Essa falsa liberdade que a rua dá para a pessoa talvez seja o ponto mais difícil a ser trabalhado”, explica Francine. Apesar da observação da assistente social, moradores e ex-moradores de rua concor- dam quanto à dureza da men- dicância. A violência, os dias passados sem alimento, o des- caso dos moradores da cida- de, os vícios nos quais muitos entram e mesmo as mudan- ças climáticas. A rua é abrigo e, ao mesmo tempo, um desa- fio a ser superado. “A vida no trecho é uma vida sofrida. São muitas portadas na cara, muitos ‘nãos’ que leva. É sofrido, mas a pessoa tem que saber viver”, relata Márcio Lucindo, 32, residente do CEAC.
Matéria para o suplemento Sujeito, produzido para as disciplinas Jornalismo Impresso II e Planejamento Grafico Editorial II
O grande desafio não é tirá-los da rua, mas tirar a rua deles
Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco,
do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados,
são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver,
os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier;
nada se perde na natureza.
(João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas)
Nathalia Rocha e Isabela Romitelli
Dia chuvoso em Bauru. Ruas alagadas, pessoas so- bre ônibus perdidos em meio às águas. As ruas da cidade param por algumas horas. Cidadãos comuns às vezes têm a opção de esperar até que a chuva passe. Enquanto isso, correm aqueles que não têm um teto. Para eles, a rua não pára. É sua moradia, seu abrigo, e sua sobrevivência. De acordo com pesquisa realizada pela Secretária do Bem Estar Social, cerca de 80 pes- soas vivem em situação de miséria no município. Isso sem contar aqueles que migram de uma região para outra.
Dentre as razões que levam um cidadão às ruas, as mais comuns são as perdas fami- liares, as desilusões amorosas e o envolvimento com drogas. Uma vez no asfalto e diante de suas dificuldades, esses indivíduos ainda enfrentam o descaso daqueles que passam e não só deixam de ajudá-los, mas, muitas vezes, os destra- tam. “A pior parte é a humilhação. Ficar sujo, fedendo, pedindo as coisas. Olhar na cara das pessoas e elas não fa- larem nem ‘bom dia’. Você vai chegando e fecham a porta, te tratam como um presidiário”, desabafou Carlos Roberto, 51.
Em Bauru, algumas entida- des oferecem abrigo e alimentação a pessoas em situação de rua, como o Centro POP e o Centro Espírita de Amor e Caridade (CEAC). No CEAC, além do serviço de pernoite, há atendimento àqueles que buscam sair da rua, a chamada “casa de passagem”, em que os indivíduos recebem apoio psicológico, fazem atividades terapêuticas e seguem uma rotina de reinserção social e, ao final, são encaminhados para oportunidades de emprego.
Apesar dos serviços de as- sistência, muitos se recusam a aceitar ajuda e preferem continuar vivendo daquilo que conseguem na rua. Fica claro o contraste entre aqueles que procuram auxílio do CEAC, os quais descrevem o centro e sua equipe como os únicos que lhes ofereceram uma oportunidade, e os cidadãos que pre- ferem continuar onde estão. “Você vai no albergue e fica tipo em uma cadeia, é trata- do de uma forma diferente.
Na rua eu estou melhor. No albergue hoje em dia tem guarda, tem polícia, eu prefiro a rua”, afirma Morador de Rua, que preferiu assim ser identificado. Essa visão negativa talvez ex- plique o fato de o albergue, que oferece vinte vagas, nunca ter atingido sua capacidade máxima. “A gente vê a rua como algo muito fácil. Enquanto os usuários encontrarem na rua tudo o que eles tinham dentro de casa, eles não vão ter porque sair. Enquanto a sociedade indiretamente sus- tentar um morador de rua, ele não vai voltar para um lugar onde ele tem regras para se- guir. Essa falsa liberdade que a rua dá para a pessoa talvez seja o ponto mais difícil a ser trabalhado”, explica Francine. Apesar da observação da assistente social, moradores e ex-moradores de rua concor- dam quanto à dureza da men- dicância. A violência, os dias passados sem alimento, o des- caso dos moradores da cida- de, os vícios nos quais muitos entram e mesmo as mudan- ças climáticas. A rua é abrigo e, ao mesmo tempo, um desa- fio a ser superado. “A vida no trecho é uma vida sofrida. São muitas portadas na cara, muitos ‘nãos’ que leva. É sofrido, mas a pessoa tem que saber viver”, relata Márcio Lucindo, 32, residente do CEAC.